O Jornal ‘O Globo’ evidenciou nesta semana a importância dos Cirurgiões-Dentistas na linha de frente das Unidades Terapia Intensiva (UTIs) contra o coronavírus, em reportagem de capa na versão impressa e no portal online. Em destaque, a importância dos cuidados com a saúde bucal dos pacientes desde a simples escovação até restaurações, a Odontologia Hospitalar é essencial para prevenir infecções respiratórias, como a pneumonia. Confira abaixo a reportagem completa:
Há mais de um ano, Denise Abranches chega ao Hospital São Paulo por volta de 7h. Vai direto para a paramentação e entra na primeira UTI de Covid ainda pela manhã. Costuma se apresentar ao paciente intubado, mesmo sabendo que ele está inconsciente, e assim explica seu trabalho:
— Olá, eu sou a doutora Denise. Sou chefe da Odontologia do hospital e estou aqui para cuidar da sua boca. Sei que você está lutando, e nós estamos trabalhando para te ajudar nessa luta. Primeiro, vou fazer uma limpeza na sua boca e olhar se está tudo bem. Pode confiar em mim.
A cena se repete ao longo de todo o dia, enquanto a cirurgiã dentista percorre os 73 leitos de UTI ocupados por pacientes com Covid-19 no Hospital São Paulo. Há 23 anos na instituição, Denise Abranches viu seu trabalho ser transformado pela pandemia. Ela agora passa ao menos 10 horas por dia no trabalho, almoça dentro do carro, no estacionamento (“para não tirar a máscara perto de ninguém”, explica), passou aniversário, Natal e Ano Novo no hospital e, quando retorna à casa, exausta, precisa tomar remédio para, como diz, “apagar da memória as cenas do dia”. Quando finalmente pega no sono, não raro sonha que é intubada. No dia seguinte, às 7h, está de volta ao hospital.
—Eu ponho a mão na boca do paciente contaminado, ponho a mão no vírus. A carga viral na saliva é alta. Para os médicos e técnicos de enfermagem, é um imenso risco colocar a mão na boca. Esse é o meu trabalho, não deles. E enquanto eu estiver de pé, estarei aqui cuidando do paciente que houver — diz a dentista, sem esconder as lágrimas de cansaço e tristeza.
‘PERDEMOS COLEGAS’
Em março passado, além de ver o número de leitos do hospital dobrar com relação a 2020, Abranches perdeu a assistente, com quem trabalhava havia seis anos, vítima da Covid-19. No Hospital São Paulo, ela atende com outros 11 dentistas, além de oito residentes. — Perdemos pacientes e colegas todos os dias. Sou Cirurgiã-Dentista, não sou intensivista. Não estava preparada para lidar com a morte assim. Na faculdade, a gente pensa que vai trabalhar para deixar o sorriso das pessoas mais bonito. Agora, nossa luta é para que as pessoas sobrevivam. O trabalho dos dentistas nas UTIs Covid, ela lembra, é fundamental para conter ou impedir eventuais infecções que poderiam agravar o quadro da doença —prin cipalmente a pneumonia associada à ventilação (PAV), uma infecção pulmonar comum entre os que estão sob uso de ventilador.
Um estudo publicado no International Dental Journal, em 2018, mostrou que o cuidado odontológico, desde a simples escovação até restaurações, preveniu 56% das infecções respiratórias, como a pneumonia, em pacientes em ventilação mecânica. Ainda assim, são poucos os profissionais atuando na chamada Odontologia Hospitalar. Segundo o Conselho Federal de Odontologia, há 2.120 dentistas hospitalares no país. Não existe uma lei federal que obrigue hospitais públicos a contratar dentistas, embora muitos tenham a figura do cirurgião buco maxilo, que, fora do contexto de pandemia, costuma ser acionado em casos de traumas. O trabalho de higiene bucal nas UTIs em geral é realizado por enfermeiros e técnicos de enfermagem.
No Rio, desde o ano passado, os coordenadores da Odontologia Hospitalar na RioSaúde decidiram dar cursos para enfermeiros e técnicos a fim de replicar procedimentos básicos de higiene oral durante a pandemia, o que já contribui para reduzir problemas causados pela intubação prolongada, como a candidíase oral. O contato do tubo com lábios ressecados pode abrir fissuras, e até mesmo a hidratação labial pode prevenir a herpes ou infecções que chegariam até a corrente sanguínea.
— Mas o que os técnicos não conseguem fazer é a remoção de um foco infeccioso, que é trabalho para um dentista hospitalar — explica Ricardo Pimentel, coordenador da Odontologia Hospitalar a RioSaúde, ao lado de Daniela Fagundes. Os dois têm percorrido hospitais públicos da cidade para ensinar equipes de enfermagem na linha de frente da pandemia e, também, para ajudar no atendimento de pacientes intubados, enquanto ainda não está implementada no município do Rio uma rede de dentistas hospitalares. Fagundes estima que, na pandemia, o índice de prevenção de infecções respiratórias por meio do trabalho dos dentistas nas UTIs pode chegar a 80%.
—A pneumonia associada à ventilação já é um grande foco da odontologia hospitalar, mas, nos casos de Covid, a replicação viral é muito maior. As pessoas ficam muito mais tempo na UTI, às vezes 30, 40 dias. As bactérias se acumulam e, sem a higiene da boca, a chance de uma pneumonia bacteriana cresce exponencialmente. Com cuidados, essa chance cai muito —afirma Fagundes.
CONTATO DIRETO COM O VÍRUS
Na semana passada, acompanhada dos colegas Ricardo Pimentel e Altamiro da Silva Lima Filho, ela entrou no na UTI Covid do Hospital Miguel Couto, onde havia 35 pessoas intubadas. Fizeram a higiene oral de um paciente, os três debruçados sobre sua boca.
—Estamos em contato direto com o vírus. As gotículas de saliva, o aerossol de que tanto se fala, tudo isso está nos nossos rostos, seja num leito de UTI, seja nos consultórios —diz Lima Filho, que foi infectado duas vezes no ano passado e, no início deste ano, foi vacinado, bem como seus colegas.
— Já existe uma parte do meio de saúde conscientizada da necessidade dos dentistas nos hospitais, mas é uma profissão que deveria ser mais valorizada.
Criadora de um dos primeiros cursos de odontologia hospitalar no país, a dentista Claudia Baiseredo trabalha na Casa de Saúde São José, no Rio, e em três hospitais de Brasília. Ela conta que, em 2008, quando começou a atuar em UTIs, ouvia piadas:
— Era comum chegar à porta da UTI e ouvir gracinhas do tipo: “Veio fazer clareamento dental no paciente, doutora?”. As pessoas não entendiam nosso trabalho. Hoje, somos chamados para trabalhar na linha de frente da maior crise sanitária da História.
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Por Audrey Furlaneto, Jornal O Globo.