Aids: Vacina “sob medida”

Técnica criada por cientistas canadenses cria uma espécie de imunoterapia personalizada contra o vírus HIV, usando células removidas dos próprios doentes. O material é multiplicado in vitro e depois reinjetado nos pacientes

Alguns soropositivos contaminados há mais de 10 anos conseguem controlar o vírus HIV, causador da Aids, sem a necessidade de tomarem medicamentos. Se depender dos esforços de cientistas canadenses do Centro de Saúde da McGill University (MUHC, pela sigla em inglês), a condição de “lentos progressores” pode se estender a quase todos os pacientes, em breve. Os especialistas obtiveram uma “vacina individualizada”, a primeira potencializada com o próprio vírus HIV do infectado. O novo tratamento é uma espécie de imunoterapia customizada, feita “sob medida” para cada caso.

A imunoterapia utiliza células dendríticas — presentes nos glóbulos brancos — removidas de doentes e depois multiplicadas in vitro, em um laboratório da Argos Therapeutics, em Durham, na Carolina do Norte. Essas células “abrigam”, sobre suas superfícies, partes do HIV invasor, permitindo ao resto do sistema imunológico identificar e atacar o vírus. “Elas estimulam o sistema imunológico, em todas as suas funções, ao mesmo tempo. Aumenta a força das células assassinas que destruirão as células imunológicas devastadas pelo HIV, as CD4”, explicou ao Correio, por e-mail, Jean-Pierre Routy, da Divisão de Hematologia do MUHC e principal autor da pesquisa publicada pela revista científica Clinical Immunology. A exposição dessas células ao ácido ribonucleico (RNA) do HIV encorajou o desenvolvimento de defesas bastante específicas contra aquela cepa viral.

Em tese, o que os cientistas fizeram foi “instruir” o sistema de defesa do corpo humano a combater o inimigo invasor. A expectativa é de que a imunoterapia seja uma arma ainda mais eficiente contra o vírus do que os coquetéis antirretrovirais da atualidade. Os primeiros resultados clínicos são animadores. “O estudo mostrou que, ao menos no laboratório, as células dos pacientes ficaram mais fortes depois da vacinação. A segunda fase dos testes, praticamente completa, avaliou se o HIV pode ser controlado depois da descontinuação do tratamento corrente”, afirmou Routy. “Nós observamos um controle parcial do vírus em 13 dos 16 pacientes, que apresentaram um vírus 10 vezes mais fraco do que antes da terapia”, comemorou o cientista. A eficácia da técnica foi provada em oito locais diferentes do Canadá.

Diferença

Segundo Routy, a diferença da “vacina individualizada” para as vacinas comuns é que as últimas não evitam a modificação do vírus ao longo do tempo. “Conseguimos burlar esse problema ao usar o último vírus detectado antes do início da terapia antirretroviral”, comentou o canadense. Questionado sobre o motivo da preferência pelas células dendríticas, ele citou sua multifuncionalidade. “Elas aumentam todos os aspectos da resposta imunológica, tornando-a mais potente. As limitações estão no fato de a técnica ser muito complexa, e no preço”, acrescentou.

As células dendríticas modificadas, chamadas de AGS-004, têm ainda a vantagem de provocar efeitos colaterais mínimos, em comparação com os medicamentos atuais. Os pesquisadores também constataram níveis aumentados de linfócitos CD-8 nos pacientes, as células de ataque do sistema imunológico. Routy prefere não estabelecer cronogramas para a disponibilização da imunoterapia nos hospitais. No momento, os cientistas iniciam nova fase de testes, agora utilizando um placebo (substância inócua, sem fins medicinais), nos Estados Unidos e no Canadá — por meio de um acordo firmado com a FDA, a agência reguladora de alimentos e drogas nos EUA, e com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, pela sigla em inglês). “A intenção é associar o aumento da resposta imunológica a um melhor controle do vírus. Mas o objetivo global de nossa pesquisa é permitir que certos pacientes sejam capazes de interromper o tratamento com antirretrovirais e controlar o HIV”, concluiu o líder do estudo.

ENTREVISTA // Jean Pierre Routy

Em que consiste a imunoterapia customizada para cada paciente? É a primeira vacina indivualizada já projetada?

É a primeira vacina a ser potencializada com o próprio vírus de cada paciente, por meio do uso de células dos glóbulos brancos (células dendríticas). A nova terapia utiliza células dendríticas removidas de pacientes infectados pelo vírus HIV e depois multiplicadas em um laboratório, na Argos Therapeutics, em Durham (Estados Unidos). As células dendríticas apresentam partes dos vírus invasores sobre suas superfícies, permitindo ao resto do sistema imunológico para identificar e atacar os invasores. Essas células empuram o sistema imunológico, em todas as suas funções, ao mesmo tempo. A vacina funciona aumentando a força das células assassinas que destruirão as células imunológicas infectadas pelo HIV (células CD4).

Que resultados o senhor obteve nos testes? Que progressos a pesquisa apresentou?

O primeiro estudo mostrou que, no laboratório, as células dos pacientes ficaram mais fortes depois da vacinação, o que nos permitiu realizar um segundo estudo para avalisar se o vírus pode ser controlado após a descontinuação da terapia anti-retroviral. Em outros termos, a vacina aumenta o controle imunológico do vírus HIV, mesmo sem anti-retrovirais. Nós observamos um controle parcial do vírus em 13 de 16 pacientes – que apresentaram um HIV 10 vezes mais fraco que antes da terapia. Os dados foram apresentados em uma conferência sobre vacina contra Aids em Paris, quatro semanas atrás.

Por que o senhor decidiu usar células dendríticas do próprio vírus do paciente? E qual o papel dessas células dentro do processo?

Vacinas comuns não funcionam e o vírus surge ou se modifica em uma pessoa ao longo do tempo. Ao usar o último vírus detectado antes da terapia anti-retroviral, conseguimos burlar esse problema. As células dendríticas são multifuncionais. Elas aumentam todos os aspectos da resposta imunológica, tornand-a mais potente. As limitações são o fato de a técnica ser muito difícil e cara.

Quando a vacina estará disponível nos hospitais e quais as próximas fases de sua pesquisa?

Ainda não sabemos. Estamos começando uma nova fase usando placebo nos EUA e no Canadá, por meio de um acordo com a FDA e o apoio do NIH. A intenção é associar o aumento da resposta imunológica com o melhor controle do vírus, após a interrupção dos anti-retrovirais. O objetivo global é permitir que certos pacientes sejam capazes de interromper o tratamento anti-retroviral e controlar o vírus, igualando-se aos chamados progressores lentos – pacientes infectados há pelo menos 10 anos que podem controlar o vírus sem medicamentos.

Fonte: Correio Braziliense – 29/11/2009