Brasil é pioneiro na América Latina em desenvolver células-tronco pluripotentes

Elas capazes de se adaptar a qualquer tipo de órgão ou tecido do corpo, sem a necessidade de usar embriões.

Euforia é a reação imediata ao anúncio de avanços nas pesquisas brasileiras sobre células-tronco. Os cientistas, porém, pedem calma: o desenvolvimento dos estudos pode levar décadas e é muito cedo para prometer curas de doenças. Eles investigam, por exemplo, a formação de tumores em pacientes depois de tratamentos com as células-tronco. Encontrar a solução para patologias neurológicas, como os males de Parkinson e Alzheimer, e reconstituir rapidamente tecidos lesionados são sonhos antigos, que ganharam força com a divulgação de laboratórios do país, no início do ano, de que eram capazes de produzir linhagens de células-tronco pluripotentes (iPS, em inglês). Idênticas às cobiçadas células-tronco embrionárias, elas são a aposta de pesquisadores do mundo inteiro para compreender doenças ainda misteriosas — com a vantagem de não necessitar de embriões para sua obtenção.

Em vez disso, a capacidade de se transformar em qualquer tecido do organismo — característica que dá o nome pluripotente à célula — é recriada artificialmente em uma célula adulta, como a da pele, por meio da reprogramação de seu DNA. Até pouco tempo atrás, extrair células de embriões humanos era a única forma de obter as iPS, o que despertava uma série de restrições éticas aos estudos. O Brasil é o primeiro país da América Latina a viabilizar a reprogramação. Antes, só Japão, Estados Unidos, Alemanha e China dominavam a técnica

A descoberta não diminui a importância das pesquisas com células embrionárias originais, mas reduz a necessidade de destruir embriões para gerar as pluripotentes, justamente o motivo alegado para tentar barrar os estudos: eticamente, seria incorreto fabricar ou clonar um embrião. Os pioneiros na técnica de reprogramação foram os japoneses. Em 2006, eles desenvolveram as células em camundongo e, em 2007, reproduziram o feito em células humanas.

No Brasil, a façanha foi realizada nos laboratórios do neurocientista Stevens Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e do biomédico Martin Bonamino, da Divisão de Medicina Experimental do Instituto Nacional de Câncer (Inca). O processo de reprogramação é realizado com a introdução de genes que despertam as células para a condição de pluripotência. “É como se fosse um programa de computador que diz à célula o que fazer”, explica Bonamino.

Riscos

A inserção desses genes é o elemento fundamental da reprogramação, mas também o calcanhar de Aquiles da técnica. Por enquanto, a única maneira conhecida de modificar as iPS é inserir quatro genes no DNA das células adultas, os chamados Oct-4, Sox-2, Klf-4 e c-Myc. Os vírus, construídos em laboratório, conduzem os genes até o genoma nuclear da célula. Missão cumprida, os vírus, usados como vetores para transformar as células, morrem sem se reproduzir.

A dificuldade é que o local de inserção dos genes no genoma é aleatório, podendo interferir em funções vitais da célula. Se um dos genes agir no sistema de controle da divisão celular, há o risco de a célula se tornar cancerígena. “Precisamos dominar o caminho desses genes para ter segurança em experiência com doentes”, diz Bonamino. A expectativa é de que as descobertas possibilitem a produção de tecidos de reposição geneticamente que seriam usados no tratamento de doenças, na recuperação de lesões ou em testes de medicamentos. “Não haveria problema de rejeição, porque as células seriam do próprio paciente”, esclarece o biomédico do Inca.

O caminho de todos os grupos de pesquisa, inclusive os estrangeiros, é aprimorar a reprogramação, introduzindo os genes sem usar vetores. “A tentativa hoje é descobrir como reativar o programa que já se encontra dentro das células. Isso evitaria a cópia de um novo ‘programa’ para dentro da célula, o que é perigoso. Sabemos o que o programa faz, mas não sabemos exatamente como e nem como controlá-lo completamente”, completa Bonamino. O biomédico alerta que as pesquisas ainda estão em curso, e que as pessoas não devem se arriscar em tratamentos prometidos por laboratórios.

Na Rússia, um menino israelense recebeu um tratamento à base de células-tronco fetais para uma rara doença genética e desenvolveu tumores, gerando desconfiança sobre os avanços das pesquisas. Em 2001, o garoto, que tem 17 anos hoje, recebeu o tratamento, em um hospital em Moscou, com a promessa de cura para uma doença genética que ataca a região do cérebro responsável pelo movimento e fala. Ele recebeu injeções de células-tronco fetais no cérebro.

Quatro anos depois, ele começou a se queixar de dores de cabeça e médicos israelenses encontraram dois tumores benignos nos mesmos lugares que receberam as injeções com células-tronco. Os médicos alegaram que o tumor, removido da espinha, continha células que não poderiam ter surgido dos tecidos do próprio paciente. “Justamente por isso, precisamos de segurança para realizar testes em humanos. A ciência caminha em ritmo mais lento que a expectativa dos homens. É preciso ter paciência e aguardar o desenvolvimento dos estudos”, certifica Bonamino.

Fonte: Correio Braziliense – 15/10/09