Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais: mais do que uma especialidade, um ato de amor à vida

Mais de 45 milhões de pessoas com necessidades especiais no Brasil ainda enfrentam a falta de olhar inclusivo para viver em uma sociedade adaptada. De acordo com dados do último Censo Demográfico, em 2010, esse número representa 23,9% da população brasileira. Entre as deficiências identificadas, a pesquisa considera quatro tipos: visual, auditiva, motora ou mental/intelectual. Nesse contexto, alguns grupos de Pacientes com Necessidades Especiais podem ter maior suscetibilidade para o desenvolvimento de doenças bucais, a depender do tipo de Patogenia sistêmica, alteração salivar, dieta cariogênica, alteração muscular e ineficácia da higienização.

Apesar de o Brasil estar incluído no 1/3 dos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) que dispõem de legislação para as pessoas com deficiência, a saúde bucal é a assistência em saúde mais negligenciada para as pessoas com necessidades especiais, seja em âmbito ambulatorial, domiciliar ou hospitalar. Como geralmente essas pessoas têm uma série de outras demandas ligadas à saúde, a exemplo de fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia, a Odontologia acaba ficando em segundo plano, buscada apenas em necessidades específicas ou em situação de urgência.

Segundo a Cirurgiã-Dentista, especialista em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, Francine Moreira (CRO-GO-CD-9024), essas pessoas têm até duas vezes mais chance de ter doenças bucais do que a população tradicional. “O Cirurgião-Dentista precisa ser visto como parte da equipe multidisciplinar no cuidado com a saúde do paciente de forma integrada e não isoladamente. Além disso, em caráter preventivo, é preciso que pais, mães e familiares busquem assistência odontológica assim que nascer os primeiros dentes e também que adotem um programa de prevenção de saúde bucal para rotina periódica de visitas, assim como é feito com os demais profissionais de saúde”, explicou.

Cirurgiã-Dentista Francine Moreira em atendimento ao paciente especial Paulo Miguel

Somado a essa realidade, a população deficiente ainda enfrenta outra dificuldade, dos 328 mil Cirurgiões-Dentistas inscritos em todo país, apenas 718 possuem especialização em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais. Ou seja, nem a rede pública ou a particular possui especialistas suficientes para atender essa parcela da população com a qualidade necessária. Essa realidade representa, inclusive, problema de saúde pública. Os tradicionais Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) do Sistema Único de Saúde (SUS), não dispõem de todos os especialistas necessários à saúde bucal da população.

Para a Cirurgiã-Dentista e professora da disciplina de Atenção a Pessoa com Deficiência e Grupos Especiais na graduação, Adriana Zink (CRO-SP-CD-52600) um caminho viável para estimular o crescimento do interesse profissional de Cirurgiões-Dentistas nessa área de atuação é por meio da inclusão de disciplinas específicas como obrigatórias na grade curricular da graduação, não somente na condição de especialidade odontológica.

Recentemente, algumas Instituições de Ensino Superior (IES) incluíram na graduação em Odontologia disciplinas voltadas para o cuidado com pacientes com necessidades especiais, tendo em vista o grau de necessidade social. “É um diferencial ter esse tipo de disciplina como obrigatória, pois o formando passa a ter olhar inclusivo, o que também facilita na escolha da área de atuação. No início, muitos estudantes têm até receio de atender esse tipo de paciente e, aos poucos, é possível transformar essa expectativa e ver no rosto desses acadêmicos a felicidade pelo sucesso no atendimento realizado, o que é muito gratificante. Esse aprendizado também beneficia pacientes sistemicamente comprometidos, diabéticos, renais, cardiopatas, entre outros”, explicou.

Cirurgiã-Dentista Adriana Zink

Esse conhecimento, explica a Cirurgiã-Dentista Adriana Zink, contribui diretamente para melhor conduzir as dificuldades na realização da manutenção diária na higiene bucal e os cuidadores recebem orientações específicas para manter a boca do paciente saudável. Segundo ela, algumas adaptações em escovas, auxílio com abridores de boca para algumas condições e, assim, sempre individualizando de acordo com a necessidade específica. “Os pacientes com transtorno do espectro autista, por exemplo, podem ter alterações sensoriais que dificultam a realização da higiene bucal. Assim que identificada a dificuldade, o profissional irá individualizar a técnica de escovação para aquela pessoa. Algumas técnicas facilitam muito e esse paciente precisa, em sua maioria, de pistas visuais que organizam a realização da tarefa. Os pais são bem orientados e a atividade vai evoluindo até chegar a uma escovação adequada. Alguns têm mais dificuldade e outros menos. A nossa orientação é iniciar precocemente a visita ao consultório para que todo processo de dessensibilização aconteça antes de estarem instalados problemas odontológicos. Trabalhar com prevenção é o melhor caminho”, esclareceu.

No artigo “Atendimento Odontológico em pacientes com necessidades especiais”, publicado na Revista Odontopediatria Latinoamericana, destaca que a abordagem odontológica de pacientes com necessidades especiais deve estar embasada em uma anamnese detalhada, com todos os dados do indivíduo e da deficiência que Irão auxiliar no planejamento, diagnóstico e prognóstico do tratamento. O manejo do paciente vai depender de uma série de adaptações de acordo com o tipo de deficiência, a idade e a necessidade odontológica.

Criado para auxiliar tanto os pais quanto os demais profissionais envolvidos no cuidado com estas pessoas, a cartilha “Transtorno do Espectro Autista (TEA)”, com distribuição gratuita à população, esclarece detalhes sobre o cuidado diário com a saúde bucal desses pacientes: “Pessoas no espectro autista normalmente têm muita dificuldade em lidar com a higiene bucal, e seus cuidadores muitas vezes não possuem indicações objetivas para como agir nestas situações. A dor, gerada por doença bucal, pode desorganizar a pessoa com TEA e pode torná-la agressiva ou autoagressiva, e o descontrole pode levar ao aumento do uso de medicações”.

Direito à inclusão social é lei

– Entre as legislações vigentes no Brasil voltadas às pessoas com necessidades especiais, consta a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência disposta na Lei nº. 7853/1989, regulamentada pelo decreto 3298/1999.

– Além disso, a Lei 12.764/2012 institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução.

– Em 2014, a Portaria 199 de 30/01/2014, publicada pelo Ministério da Saúde, instituiu a política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com doenças Raras. Essa portaria aprovou diretrizes para o atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde) e instituiu incentivos financeiros de custeio.

– A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), – Lei 13.146/2015 – destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

– A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reafirma o direito de acesso à saúde e reitera que as pessoas com deficiência devem ter acesso a todos os bens e serviços da saúde, sem qualquer tipo de discriminação. O Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Viver sem Limite, elaborado com a participação de mais de 15 ministérios e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), ressalta o compromisso do governo brasileiro com as prerrogativas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Assim, firma princípios importantes do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integralidade e equidade. Além disso, estabelece diretrizes e responsabilidades institucionais para a atenção e o cuidado da pessoa com deficiência.

Por Michelle Calazans, Ascom CFO
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Fotos: Acervo pessoal das cirurgiãs-dentistas entrevistadas